O Presidente da República criticou este sábado, 14 de Dezembro, os messianismos e a desvalorização dos partidos e do Parlamento; e lembrou a luta de Mário Soares pela legitimidade eleitoral que se estendeu até à eleição do primeiro Presidente civil.
Marcelo Rebelo de Sousa discursava na Academia das Ciências de Lisboa, na sessão de lançamento do livro Mário Soares, 100 Anos, com fotografias de Alfredo Cunha e Rui Ochoa e textos de Clara Ferreira Alves, que contou com a presença do governador do Banco de Portugal, Mário Centeno, na primeira fila.
No mês em que se assinala o centenário do nascimento do antigo Presidente da República Mário Soares, o chefe de Estado questionou: “E agora? O vazio do contraste entre aquilo que evocámos e o quotidiano que vivemos, como vamos compaginar?”.
Em seguida, defendeu que se deve pegar nos “traços essenciais afirmados por Mário Soares” e sublinhar “a sua importância em Portugal de 2024, 2025”, a começar pela “luta contra a ditadura”. “A maioria esmagadora dos portugueses hoje não sabe o que é lutar contra uma ditadura. Não sabe, nunca lutou. E por isso também não dá grande valor, ou o valor que deveria dar à democracia”, considerou.
Segundo Marcelo Rebelo de Sousa, “é preciso recordar a diferença entre ditadura e democracia todos os dias, sobretudo naqueles dias em que há menor aceitação para os erros da democracia”, e estar alerta para “o plano inclinado de uma democracia iliberal para a ditadura”, que é “tantas vezes sedutor, mas perigosíssimo”. “Recordar isso é ajudar a construir o futuro”, declarou.
“Depois, recordar que as democracias dependem de uma prioridade cimeira que se chama povo. A soberania popular não é apenas uma inscrição na Constituição. Mário Soares foi o exemplo de quem acreditou nisso e viveu isso toda a vida. É o povo quem mais ordena, não é uma inspiração providencial, não é um messianismo vindo do mesmo ou de outro planeta. Não, tem de ter legitimidade popular”, acrescentou.
O Presidente da República elogiou também “a luta de Mário Soares” depois do 25 de Abril de 1974, “de cada vez que entendeu que havia um desvio em relação à vontade popular, o constrangimento em relação à vontade popular”, quando “o povo votara na Constituinte a realidade era o oposto da Constituinte” eleita em 25 de Abril de 1975.
“Era preciso que a legitimidade eleitoral vencesse a legitimidade revolucionária, respeitando o papel que ela tinha tido inicialmente, mas que se esgotara pelo próprio reconhecimento dos capitães de Abril. Pois essa foi uma luta que durou até à primeira revisão da Constituição [em 1982], e prosseguiu depois até à eleição do primeiro Presidente da República civil [nas presidenciais de 1986, que o próprio Mário Soares vence, sucedendo ao general Ramalho Eanes]”, referiu.
Na opinião de Marcelo Rebelo de Sousa, actualmente, sobretudo os mais novos “não têm certamente essa noção, e no entanto é um ensinamento da vida de Mário Soares”. “Outro ensinamento: o de que não há democracia sem liberdades, todas, todas. E a capacidade de abrir para mais igualdade, mais justiça social. E quando se diz todas: as liberdades de representação política, o papel dos partidos políticos, o papel do parlamento”, apontou.
O chefe de Estado realçou como “Mário Soares respeitava o papel do Parlamento” e o quanto isso é importante: “Porque em democracia há erros e os partidos cometem erros e desgastam-se pelos erros que cometem, mas a solução não é suprimir os partidos, diminuir os partidos ou reduzir o papel dos Parlamentos. É, pelo contrário, reformá-los”.
Segundo o Presidente da República, “esse é um desafio de Mário Soares hoje, amanhã, depois da manhã, nos próximos dias, semanas, meses e anos: corrigir para não deixar criar vazios”. “Porque, tendo a política como a economia e a sociedade do horror ao vazio, o vazio pode ser preenchido, não por uma democracia, mas por uma democracia dita iliberal, meio caminho para a ditadura”, advertiu.
O chefe de Estado destacou “a tolerância” e “o europeísmo” como outros valores pelos quais Mário Soares se bateu, “em uníssono total” com a sua mulher, Maria Barroso, e advogou que ambos devem ser celebrados “construindo o futuro” mais do que “evocando o passado”.
Sobre o livro lançado este sábado, descreveu-o como “uma edição única, em qualidade”, de evocação do antigo Presidente, “única nas fotografias” de Alfredo Cunha e de Rui Ochôa, “única no requinto da edição, única no texto de Clara Freira Alves”. Na sua opinião, “era preciso trazer a imagem de Mário Soares, neste tempo de imagem, à memória dos portugueses ou ao conhecimento dos portugueses”.
Mário Soares nasceu a 7 de Dezembro de 1924, em Lisboa, e morreu a 7 de Janeiro de 2017, aos 92 anos, na mesma cidade. Advogado, combateu a ditadura do Estado Novo, foi fundador e primeiro líder do PS. Regressado do exílio, em França, após o 25 de Abril de 1974, foi ministro dos Negócios Estrangeiros, primeiro-ministro e Presidente da República, durante dois mandatos, entre 1986 e 1996.